Como a Spotify está construindo sua cultura através da autonomia
O Spotify é um serviço de streaming de música digital que transformou a forma que nós escutamos música para sempre. Na verdade o Spotify não precisa de muita apresentação, provavelmente você também utiliza o aplicativo criado pela empresa (eu estou escutando música nele enquanto escrevo essa análise).
Mas uma coisa você vai gostar muito de conhecer, a forma como a Spotify criou sua cultura para permitir que suas equipes inovassem para chegar ao principal produto onde escutamos música atualmente.
Eu resolvi fazer a análise da cultura do Spotify não somente por ela ser um exemplo de como dar autonomia para as equipes de trabalho poderem inovar, mas também por ela ser a cultura mais copiada por outras empresas, principalmente aqui no Brasil.
Espero que após fazer a leitura de toda essa análise você consiga entender por que implantar squads, chapters e guildas na sua empresa não vai melhorar a sua cultura organizacional. Toda essa forma de trabalho que vamos ver a seguir, e que funciona muito bem, está totalmente amparada por algo muito maior, uma cultura que faz da autonomia seu principal pilar.
As práticas e forma de trabalho que muitas empresas copiam do Spotify nunca terão o mesmo impacto quando tiradas do contexto maior, que é composto pela cultura e estratégia da empresa.
Mas antes de entrarmos em todos os detalhes sobre como a Spotify faz para desenvolver seus produtos e também sobre como ela faz a gestão de pessoas, gostaria de apresentar alguns dados que demonstram o sucesso que a Spotify alcançou.
Dica: se você gostar dessa análise cultural pode se interessar também por outras duas que fiz, garanto que vale a pena fazer a leitura: Netflix e Airbnb.
Veja alguns fatos importantes sobre a Spotify:
A declaração de missão da Spotify:
As declarações de missão e visão da Spotify já mostram a ênfase que a empresa coloca na eficácia operacional. Como uma rede de streaming de música online, o Spotify descobriu a estratégia para comandar um grande número de seguidores através de sua missão e declaração de visão. Este é um elemento que os fundadores da empresa, Martin Lorentzon e Daniel Ek, estimularam desde seus primeiros dias em 2006, e realmente, ela rendeu os frutos pretendidos tendo feito a empresa crescer e ser uma das maiores com mais de 356 milhões de usuários (até 31 de março de 2021).
Uma declaração de visão corporativa é sobre o que o negócio visa alcançar, aquilo que a gestão da empresa quer alcançar, enquanto uma declaração de missão corporativa basicamente define as operações que uma empresa necessita para atender aos seus objetivos. A declaração de visão do Spotify enfatiza o quão influente a empresa é em questões relacionadas ao conteúdo digital e como ela enriquece isso.
Por outro lado, a declaração de missão da empresa enfatiza os benefícios diretos que ambos os seus usuários obtêm da empresa. Também revela que, embora tenham necessidades diferentes, a magnitude e a qualidade de experiência que recebem são praticamente iguais e bem equilibradas.
A empresa implementa criteriosamente a sua missão e visão, permanecendo sempre dentro das expectativas e comportamentos de seus valores fundamentais.
A declaração de missão esclarece melhor os objetivos da empresa e como ela deseja que esses objetivos se tornem realidade. Quero destacar algumas partes:
A declaração de visão do Spotify é “ Nós imaginamos uma plataforma cultural onde os criadores profissionais podem se libertar das restrições de seu meio e onde todos podem desfrutar de uma experiência artística imersiva que nos permite ter empatia uns com os outros e nos sentir parte de um todo maior”.
A declaração traz à luz como o Spotify é estratégico a ponto de garantir que ofereça serviços ganha-ganha tanto para os artistas quanto para os fãs, de modo que ambos não apenas se sintam apreciados, mas também parte do quadro geral ou visão da empresa. A declaração incorpora os seguintes pontos:
Os valores fundamentais do Spotify incluem palavras como “apaixonado, inovador, sincero, colaborativo e divertido”. Esses valores são o que a corporação considera como os princípios norteadores que mantêm tudo dentro das expectativas da gestão. Eles também garantem o sucesso da declaração de missão e visão, garantindo que todos permaneçam realinhados com as metas e objetivos da empresa.
O Spotify entende que as pessoas dão o melhor quando se envolvem no que mais amam. Na verdade, é exatamente isso que alimenta a criatividade, que leva a novos designs e abordagens. A cultura organizacional que caracteriza o Spotify contribui para o seu sucesso, e isso também é um reflexo da ênfase da empresa na sinceridade e no respeito mútuo.
Perceba que todos os valores abaixo possuem comportamentos descritos que podem ser observados e mensurados.
1 – Colaborativos: Somos todos Spotify. Somos mais fortes juntos. Quanto melhor colaboramos, mais eficazes nós somos. Quando estamos trabalhando bem entre as funções, somos imparáveis.
2 – Inovativos: Somos todos pioneiros. Somos originais e criativos em nosso pensamento. Para nós, a inovação é uma mentalidade padrão – um forte desejo de melhorar as coisas.
3 – Sinceros: Nós falamos realmente. Os melhores relacionamentos são baseados em confiança e respeito mútuos. Queremos ser justos e transparentes em tudo o que fazemos. Nós não microgerenciamos, confiamos uns nos outros para fazer um ótimo trabalho.
4 – Apaixonados: Nós sentimos. Somos orgulhosos do que conquistamos e apaixonados por onde estamos indo. Nós gostamos de ser ousados. Não temos medo de fazer grandes apostas ou errar com elas. Todos nós compartilhamos a paixão de aprender e crescer.
5 – Divertidos: Nós dizemos sim para diversão. Vamos ser honestos, temos bandas tocando no escritório – isso dá o tom. Somos uma empresa divertida e uma marca divertida. Nós sempre fomos. Nós nunca nos levamos muito a sério.
A Spotify, assim como a maioria das empresas de software ágil, trabalhava no seu início com o framework Scrum. Conforme a cultura da empresa foi evoluindo o Scrum foi deixado de lado para uma abordagem ágil não mais presa ao framework, possibilitando ainda mais autonomia para seus times.
Cada time (chamado de squad) possui autonomia para definir como vai trabalhar, e todos os squads possuem uma missão, uma estratégia de produto e os seus próprios OKRs, claro, tudo isso alinhado ao restante da empresa.
Apesar de cada squad ter uma missão, eles precisam estar altamente alinhados, e nesse caso a solução adotada pela Spotify é a mesma que a Netflix utiliza: equipes levemente acopladas e altamente alinhadas.
Como eles mesmos colocam, “como uma banda, cada músico é autônomo e toca o seu instrumento, mas eles escutam uns aos outros e focam na mesma música juntos”.
A autonomia é tão importante pois:
E aqui vai uma dica importante: não caia na armadilha de apenas mudar o nome de times para squads achando que o resultado será o mesmo.
Altamente Alinhados:
Levemente Acoplados:
Alinhamento e autonomia parecem seguir caminhos diferentes, mas vamos ver como a Spotify trata essa situação.
Na verdade o alinhamento é o que permite a autonomia. Apesar de cada squad ter uma missão, eles precisam estar altamente alinhados com a estratégia de produtos e prioridades da empresa. A missão do spotify é o mais importante.
Em vez da padronização, a polinização cruzada. Cada time experimenta novas formas de trabalho e repassa o que aprendeu para outros times, que por sua vez escolhem se vão utilizar também ou não.
Segundo um novo colaborador: “Autonomia pode ser assustadora para quem entra, ninguém te diz o que fazer, mas se você pedir ajuda, terá bastante.”
Agora vamos analisar as 4 dimensões existentes entre alinhamento e autonomia.
Quadrante 1: Baixo alinhamento e baixa autonomia
Cultura de microgerenciamento, sem propósito maior, colaboradores apenas seguem ordens.
Quadrante 2: Alto alinhamento e baixa autonomia
“Precisamos atravessar o rio, construam uma ponte”.
Líderes são bons em comunicar o que precisa ser feito, mas também dizem o que e como fazer.
Quadrante 3: Baixo alinhamento e alta autonomia
“Espero que alguém esteja trabalhando no problema do rio”.
Times fazem o que querem, cada um vai em uma direção, líderes são inúteis e o produto vira um frankenstein.
Quadrante 4: Alto alinhamento e alta autonomia
“Precisamos atravessar o rio, descubram como”.
Líderes focam no problema a ser resolvido, mas deixam o time identificar como resolvê-lo.
É nesse quadrante que a Spotify se posiciona, o trabalho do líder é comunicar qual problema precisa ser resolvido. E os motivos. O trabalho do squad é colaborar um com o outro para encontrar a melhor solução.
Em vez das estruturas tradicionais de gestão, mais focadas em formato pirâmide e comando e controle, a Spotify utiliza o conceito de Comunidades de Prática. Esse modelo é amplamente copiado por outras empresas, de forma errada e sem nenhum contexto na maioria dos casos, e acaba fracassando.
Mas funciona muito bem na Spotify, vou explicar como funciona essa estrutura.
1 – Squads: como já vimos até aqui, em vez de times a Spotify utiliza o conceito de squads autônomos. Cada time possui sua própria missão, estratégia e OKRs alinhados aos da empresa, e também possui autonomia para escolher a forma de trabalho.
Não se trata apenas de uma mudança de nome. Vejo outras empresas copiarem a estrutura utilizada pelo Spotify aos montes, mas apenas chamar um time de squad não muda nada, existe toda uma cultura construída com base na autonomia para dar contexto e suporte as equipes.
2 – Tribos: a Spotify chama de tribo um agrupamento de squads que são da mesma área.
3 – Chapter: cada pessoa faz parte de um squad e de um chapter (competência). O líder do chapter é o gestor, que atua como servidor fazendo coaching e mentoring possibilitando assim que uma pessoa mude de squad e permaneça com o mesmo gestor. Por exemplo existe o chapter de marketing, o chapter de desenvolvimento web, o chapter de vendas, etc..
4 – Guildas: servem como comunidade de prática para troca de conhecimento, é possível entrar e sair a qualquer momento.
Os papéis que existem na Spotify também possuem foco na cultura da empresa.
O medo não somente mata a confiança, ele mata a inovação. Se o fracasso é punido, as pessoas não se atreverão a tentar coisas novas. Para a Spotify cada erro também é um aprendizado, é mais importante uma recuperação rápida do que tentar evitar falhas utilizando processos e burocracias.
Para a Spotify o ágil em escala necessita de confiança em escala, e eu concordo totalmente. Mas não adianta falar da boca para fora, é necessário ter práticas e processos que estejam alinhadas para formar esse tipo de cultura.
Na sequência vou demonstrar dois exemplos utilizados pela Spotify.
Hack Week Spotify: Periodicamente (pelo menos uma vez por ano), a Spotify separa uma semana toda de trabalho para que os colaboradores trabalhem em projetos pessoais, eles trabalham nas ideias durante a semana e na sexta feira todos apresentam suas ideais e celebram o aprendizado.
Um produto incrível sempre começa com uma pessoa e uma faísca de inspiração.. mas somente vai se tornar real se as pessoas puderem tentar novas coisas.
É útil? Não importa.
Se novas ideias são tentadas, uma hora um objetivo é alcançado. Além de divertido o conhecimento ganho é maior que o resultado.
Fail Wall: Uma prática bem legal é ter uma forma de ajudar as pessoas a superarem os fracassos, ou seja, colocar um ponto final nas ideias que foram tentadas e não deram certo. A Fail Wall da Spotify (Parede de Fracassos) ajuda a lembrar os erros cometidos, mas mais importante que isso, traz aprendizado.
A Spotify utiliza a abordagem Lean Startup para desenvolvimento e validação dos seus produtos.
Se você não pode falhar, você não pode aprender. O que separa os MVPs da pesquisa de mercado tradicional é que é uma abordagem de experimentação deliberada baseada no comportamento do cliente, não na opinião.
Precisamos aprender o que os clientes realmente precisam, não o que eles dizem que querem ou o que achamos que eles deveriam querer. Precisamos descobrir se estamos em um caminho que levará ao crescimento de um negócio sustentável.
Com toda essa experimentação, como planejar? Como saber o que será lançado e em qual data?
Inovação é mais importante que a previsibilidade:
Impacto é mais importante que a velocidade:
A cultura da empresa, através dos seus processos e práticas, é criada para ser amigável a erros calculados, permitindo assim que os times realizem testes sem cometer erros graves.
“O erro não pode ser letal, ou não viveremos para errar novamente..”
Ter processos Lean para a Spotify significa manter coisas que estão dando certo e descartar aquelas que estão apenas impedindo, atrasando e criando burocracias desnecessárias.
Outra coisa bastante utilizada na cultura da Spotify são práticas modernas de gestão. Já falei sobre algumas como por exemplo a Fail Wall e Hack Week. Abaixo quero destacar outros exemplos:
Resolução de dependências utilizando quadros visuais, reuniões stand-up diárias e apresentações de trabalho semanal.
Improvements Boards (Quadros de Melhorias) elencam os principais impedimentos e quais ações foram mapeadas com seus respectivos responsáveis.
Definição de Incrível é um prática muito legal que deixa claro para todo o time aquilo que será considerado um sucesso no trabalho da equipe. Pode ser uma coisa simples, mas muitas equipes não sabem, ou tem dúvidas se o seu trabalho está bom ou não.
Toyota Improvement Kata: Nessa abordagem de gestão, a principal tarefa dos líderes e gerentes é desenvolver pessoas para que os resultados desejados possam ser alcançados. Eles fazem isso fazendo com que os membros da organização (líderes e gerentes incluídos) pratiquem deliberadamente uma rotina, ou kata , que desenvolve e canaliza suas habilidades criativas. Kata são padrões praticados de forma que se tornam uma segunda natureza e eram originalmente sequências de movimentos nas artes marciais.
Como você pode ver, existe muita coisa sendo construída diariamente na cultura da empresa para permitir que os tão copiados squads da Spotify funcionem bem.
Tenho visto as empresas simplesmente mudando o nome dos seus times para squads, em alguns casos até implantando uma ou outra ação isolada, mas isso não é nem de perto suficiente para ter um impacto semelhante ao que vimos do Spotify.
O sucesso da cultura da Spotify não foi construído em poucos meses, é um trabalho realizado diariamente, promovendo a experiência do colaborador. Muito trabalho duro diário, principalmente do time de gestão, e um bom tempo foi necessário para conseguir criar uma cultura tão forte, mas certamente é mais uma prova de que pode ser feito.
Espero que tenha gostado das dicas e também do conteúdo.
Um grande abraço!